08/10/2006

Gosto de pensar que os objectos têm um coraçãozinho que bate e tudo















Domingo de manhã, jardim das Caldas:
Entra-se, como se de um jardim encantado se tratasse. A maioria das pessoas que passeia no jardim não quer saber ou ignora o que se passa no círculo formado por enormes copas de árvores e que serve de abrigo ao encontro de pessoas e coisas. Entrei como se de uma irmandade se tratasse. Afinal, ninguém estava ali por acaso.
Uma feira tem pessoas que querem vender coisas (umas a todo o custo, outras, nem por isso), tem pessoas que querem comprar coisas (umas que sabem o querem e outras nem por isso) e depois tem as coisas.
Eu andaria mais ou menos a esvoaçar por entre umas e outras. Gosto sobretudo de observar os objectos e às vezes mexer-lhes. Fiquei enamorada por um gato enorme de terra-cota, esculpido por uma família das Caldas, por um fio de prata com aplique em cachos vermelhos e por um trompete dos bombeiros. (Ando louca à procura daquele cubo mágico, ainda se lembram?)
O que trouxe foi o que a minha carteira deixou: uns lápis de carvão intactos e acondicionados numa caixa de cartão, com a marca da fábrica Koh-I-Noor. Esta era uma fábrica da Checoslováquia (antes da cisão dos dois países). Também havia caixas de lápis da marca Viriato, muito bonitas mas também eram bastante caras.

A primeira coisa que vi na feira foi este par amoroso, aos quais me apeteceu desde logo chamar tirolesinhos: um menino do sal e uma menina da pimenta. São de uma marca de cerâmica alemã: W.Germany, que me faz pensar de imediato que também estes dois enamorados já apimentavam os pratos de muitos alemães, numa alemanha dividida por temperos e tudo o mais.

Com estes consegui regatear o preço: eles custavam 25€ (faz-me impressão dizer o preço, perde um pouco a magia). Disse ao senhor que só tinha 22€ e ele aceitou.

Comprei ainda um buda minúsculo que tinha escrito sorte num autocolante, na base (e eu acreditei...). Provavelmente sem aquele autocolante, o buda não teria qualquer efeito em mim. Este espécimen custou-me uns avultadíssimos 0,50€. Ainda hesitei, mas decidi passar cheque e não pensar mais no assunto.

Depois fica o resto. Ficam as coisas que tiveram a sorte ou o azar de não virem fazer parte das minhas coisas. Ficam aquelas para as quais olho e não gosto e ficam aquelas que vou aprendendo a gostar. Agora sou fã de bric-a-brac: pequenos objectos em cerâmica, um tanto ou quanto pirosos, mas que me fascinam.

Levei Frau e Fuer (é assim mesmo?) bem aconchegadinhos na minha mala, junto com os lápis checoslovacos. Aquele papel das bolinhas é imprescindível para quem anda à caça de preciosidades. Lavei-os com lixívia (pois ainda continham restos da sua última utilização: ela tresandava a pimenta e ele ainda tinha uma pedra de sal nos intestinos); não dá para ver na foto mas eles têm uma tampinha na base e quando os lavei o menino parecia que estava a fazer um cocó de sal.

Tive cuidado com a lixívia , pois eles têm um banho de prata (nos pézinhos e no chapéu) e depois de secos coloquei-os em lugar de destaque no meu quarto. O menino parece estar hesitante em dar uma flor à menina, que parece não ter vergonha nenhuma.

Agora que cuidei tão bem deles, tão acondicionadinhos no aconchego do meu lar, custa-me pensar que alguém os utilizou de facto e penso logo em trabalho infantil e em exploração humana (sim, porque para todos os efeitos, quem os utilizou, abria-os, penetrava-os com um pó e depois, de cabeça para o ar, sacudia-os veementemente. Como foi possível?
Eu imagino as torturas dos últimos tempos do menino, com uma pedra de sal no intestino (que não se desfazia nem por nada) e o seu explorador, a ver-se impotente para salgar umas salsichas ou uma carne de porco muito bem passada. Virado de cabeça para baixo a ver a comida ao contrário, com medo que o chapéu lhe caísse e a sentir uma pedra de sal junto aos buraquinhos da cabeça, sem nada poder fazer.

Estão em paz, agora.
E isto faz-me lembrar o dia em que comprámos uma nova árvore de Natal, com o triplo do tamanho da nossa antiga e me foi incumbida a tarefa de deitar a árvore antiga no lixo. Estava frio, era quase Natal e eu ainda fui até ao lixo da rua, mas não consegui deixar lá a árvorezinha. Trouxe-a para casa, quase a chorar, com a culpa do que quase ia fazendo e a pensar no que lhe poderia ter acontecido, a passar os restantes natais que lhe sobrassem ao pé de espinhas de peixe e pensos higiénicos e batatas cozidas e cascas de cebola e molhos com alho, a servir de enfeite. Ainda hoje está connosco (no sótão, mas isso não interessa nada).

Por isso, gosto de pensar secretamente que os objectos têm um coraçãozinho que bate e tudo

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